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"Peguei um Pedido Sinistro!": Depoimentos de um motoboy na São Paulo pandêmica

Atualizado: 26 de mai. de 2020




O filósofo Nick Srnicek defende que a economia digital, transvestida de sinônimo de progresso, serve para legitimar o capitalismo de plataforma – que tem como norte a flexibilização do trabalho e como valor o espírito empreendedor (SRNICEK, 2017)[1]. Nesse contexto, a “economia de compartilhamento” vem ganhando protagonismo especialmente através de aplicativos digitais, como Uber, Airbnb e aplicativos de delivery (iFood, Rappi, UberEats...). A rotinização da internet – e, consequentemente, de tais dispositivos digitais –, em conjunto com o neoliberalismo, transformaram a subjetividade no mundo do trabalho, de modo que trabalhadores autônomos passam a ser considerados “empresas de si” [2]. Incorporados a essa conjuntura, tais aplicativos não possuem empregados, e sim “parceiros” [3] competitivos e responsáveis por si, sem qualquer tipo de respaldo da legislação trabalhista (ou do próprio aplicativo).


 

Ticoloko Motoka: a rotina de um motoboy de aplicativos no YouTube

O paulista “Tikoloko Motoka”, introduzido nesse contexto, realiza entregas por aplicativos há mais de três anos, época em que o SpoonRocket ainda não havia sido comprado pela iFood [i]. Ele mantém um canal no Youtube desde 2016 que reúne até então 164 vídeos, ou melhor, “motovlogs”, onde expõe aos seus 4,41 mil inscritos a rotina de entregador através de uma câmera acoplada ao capacete [ii]. O espectador acompanha Ticoloko pelas ruas de São Paulo enquanto realiza as entregas e, ao longo do trajeto, vai oferecendo dicas para quem deseja trabalhar com os diversos apps de delivery disponíveis, além de denunciar suas insatisfações e críticas às plataformas.

No dia 16 de março de 2020, Tikoloko postou um vídeo intitulado “PEGUEI UM PEDIDO SINISTRO!!!” [iii], onde realizou uma entrega particular [iv] de exame de paternidade e se assustou com a possibilidade de ser um exame do Coronavírus. A partir daí que o conteúdo de seu canal passou a sentir as consequências da pandemia. O Brasil, afetado pela pandemia da COVID-19 desde o final de fevereiro, passou a fazer valer as regras de isolamento social no dia seguinte, terça-feira 17, também o dia em que o Estado de São Paulo registrou a primeira morte [v]. Cabe ressaltar que a cidade de São Paulo segue sendo o principal foco de coronavírus no país.

Três dias depois, Ticoloko inicia o vídeo [vi] na Rua José Paulino – famosa por atrair “sacoleiros” na região central da cidade de São Paulo – preocupado com o fato da mesma se encontrar totalmente vazia, a não ser por alguns vendedores parados. Diante da pandemia, o entregador explica então as novas medidas tomadas pelo iFood, isto é, o fundo de 1 milhão de reais para dar suporte aos entregadores que precisarem ficar de quarentena ao testar positivo para COVID-19 e o sistema de entregas sem contato físico com o cliente. Ticoloko, apesar de ser o único da família que exerce atividade remunerada, defende a quarentena, alegando que prefere esperar uma semana em casa e manter sua saúde em boa condição, não desejando fazer uso do fundo solidário fornecido pelo aplicativo. Ao defender a segurança de todos, Ticoloko escreve um recado ao final do vídeo sugerindo que os entregadores se manifestem, seguindo as recomendações do Ministério da Saúde, ou seja, permanecendo em casa.



(Recorte de captura de tela feita no dia 11 de maio de 2020 do vídeo [vi])

Medo do vírus e a mudança de discurso

Ticoloko trabalha como “Nuvem” para a plataforma do iFood, isso significa que é um entregador autônomo. Nos vídeos anteriores à pandemia era comum que o paulista enaltecesse o fato de ser “chefe de si mesmo", determinando individualmente quando e quanto irá trabalhar e recebendo de acordo com as entregas realizadas. Assim, se diferenciando dos “O.L.” que, por sua vez, são contratados por um Operador de Logística, precisando então cumprir turnos fixos de trabalho e recebendo uma quantia garantida por turno trabalhado.

Ao se deparar com as problemáticas advindas do surto da COVID-19, seu discurso – atravessado por uma valorização do espírito empreendedor [4] e do livre mercado – começa a mudar. Em “FUI PRA RUA EM PLENA EPIDEMIA!” [vii], Ticoloko explica que ainda não havia voltado a trabalhar para os aplicativos e que saiu de casa apenas para buscar um remédio para mãe. No caminho, demonstra insatisfação com a parceria fechada entre a prefeitura de São Paulo e os aplicativos iFood, Loggi, Uber Eats e Rappi, em que esses se comprometeriam em realizar entregas de produtos distribuídos pela prefeitura.

“Tá ligado, que nem eu ouvi o áudio aí do presidente do sindicato, do Gil, tá ligado, quem me conhece aí sabe que eu não faço coligação com sindicato, com a AMBR, nada, tá ligado, não faço, não sou da associação, não sou de sindicato, não sou nada, eu sou motoboy por mim mesmo, tá ligado, eu ando com as minha perna… Mas ele mandou um áudio lá que, mano… eu tenho que concordar com ele, pai… Quer dizer que agora os motoboy vale a pena? Quer dizer que agora os motoboy são os herói? Até um tempo atrás os motoboy tavam sendo caçados aí nas ruas… Não concordo 100% do que ele fala nos áudio né mano, mas… Em questão disso dos aplicativo querer ganhar em cima da gente, eu concordo.” (Trecho transcrito do vídeo [vii])

As entregas estão “bombando”?

No dia 14 de abril, Tico anuncia que, por necessidade, voltou a trabalhar para os aplicativos e expõe uma realidade, segundo ele, diferente da que mostra a mídia [viii]. Ao passar pela Avenida Paulista, filma uma imensidão de entregadores parados esperando serviço. Ele diz que com a pandemia os pedidos de delivery e mercado realmente “levantaram”, como dizem os jornais. Mas que é preciso atentar para o fato de muitos terem ficado desempregados, aumentando expressivamente o número de entregadores na rua. O paulista, que só conseguiu realizar quatro entregas no período de 10h da manhã às 14h20m, mesmo estando com cinco aplicativos ligados, revela as dificuldades advindas do aumento da concorrência. Além disso, denuncia outra adversidade da crise: a diminuição considerável do valor das taxas de entrega.

“E outra coisa também, teve um tal de Diego aí do aplicativo do iFood aí né, que ele foi questionado aí no meio da entrevista, perguntaram pra ele: “Ah por que baixou as taxa das entrega?”. Ele falou que não, que não baixou taxa de entrega, que a taxa tá normal, tá ligado? Que eles tão dando incentivo para o motoboy. Que incentivo, Diego?! Dois real, mano?! Dois real é incentivo?! Quer dizer que quando chove o incentivo de vocês, o adicional de vocês é cinco, três real, quatro real e agora que é plena epidemia cês querem dá dois real pro motoboy ir pra rua se arriscar, mano? Vem você pra rua, Diego! Eu desafio você a vim pra rua, Diego! Levanta sua bunda da cadeira aí mano e vem aqui fazer entrega! Vem se arriscar no meio dos carro aqui, ó!” (Trecho transcrito do vídeo [viii]) (Diego Barreto é CFO e Chief Strategy Officer do iFood)

Segundo Tico, os aplicativos têm se aproveitado do desespero das pessoas – sobretudo das que se encontram desempregadas visto que dependem deles para se sustentarem – para diminuir o valor da taxa das entregas. Para mais, acusa os aplicativos de enganarem as pessoas e obrigarem-nas a trabalhar ao diminuir bruscamente o preço das corridas.

“Tocou uma pro parceiro meu ali, mano, três km quatro real, mano! Três km quatro real!! Tem condições de você fazer uma entrega dessa??! Não tem, mano! (…) E o cara vem falar pra nós que não, que não baixou o valor das taxa, tá ligado? Que as taxa tá… tá normal. Tá normal aonde, meu amigo?” (Trecho transcrito do vídeo [viii])

“Eu sou da época que o iFood, né, era SpoonRocket e tal, o iFood passou, era doze real a entrega mínima. Era doze real, era doze, dezesseis, dezenove, vinte e um, tá ligado? Eu sou dessa época. E hoje tá como? Quatro real, mano. Cê é louco, tio. Eu que fui um cara que sempre protegi, sempre falei bem do aplicativo, tá ligado, do iFood né, mano? Infelizmente mano, hoje não… não tem como eu falar bem. Não tem como eu chegar num cara e falar assim: “Não, se cadastra no aplicativo ali, no iFood ali, mano, cê vai trabalhar, cê vai ganhar dinheiro”. Tá ligado? Não tem como.” (Trecho transcrito do vídeo [viii])

O aumento do número de entregadores cadastrados nas plataformas, em tempo de pandemia, gera outro empecilho: a aglomeração em frente aos restaurantes enquanto esperam por pedidos.

“Aí fica um monte de motoboy parado na frente dos restaurante, tá ligado? Fazendo aglomeração, correndo o risco de pegar o vírus, pra ganhar dois real de taxa. Dois real a mais. Tá de brincadeira, mano? Tá de brincadeira.” (Trecho transcrito do vídeo [viii])

No vídeo mais recente de seu canal [ix], postado no dia 3 de maio de 2020, Ticoloko concorda com a decisão do governo de São Paulo de prolongar a quarentena, aumentando as restrições. Apesar de afirmar que as pessoas precisam sair para trabalhar, pois ninguém consegue ficar dois meses parado dentro de casa, critica a irresponsabilidade de muitos que furam a quarentena para realizar atividades de lazer. O entregador faz um apelo à conscientização, pois os que desrespeitam a quarentena, diminuindo a taxa de isolamento social, prejudicam aqueles como ele que precisam sair de casa para trabalhar.

Enquanto tivermos um Chefe de Estado que não age de acordo com a seriedade do vírus e um Ministério da Saúde invisível, os gritos e apelos dos que estão na linha de frente dessa pandemia serão cada vez mais altos. Ticoloko Motoka é apenas um caso dentre milhares de entregadores de aplicativos que tentam sobreviver. Ajude essas vozes silenciadas. Se puder, fique em casa.

*Nina Desgranges é graduanda em Ciências Sociais (UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Digitais (IFCS/UFRJ) e desenvolve, há mais de um ano, uma pesquisa a respeito de aplicativos de entrega, onde aborda questões como capitalismo de plataforma, empreendedorismo de subsistência e subjetividade neoliberal através do estudo, sobretudo, de canais de YouTube de diversos entregadores, sob orientação do Professor Dr. Bruno Cardoso (IFCS/URFJ).

Referências:

[1] SRNICEK, N. Platform Capitalism. [s.l.] Polity Press, 2017

[2] DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo; Boitempo. 2016.

[3] ABÍLIO, Ludmila Costhek. Plataformas digitais e uberização: a globalização de um Sul administrado? Contracampo, v. 39, n. 1, p. 12-26, 2020.

[3] A questão do “self empreendedor” é melhor discutida em: ROSE, Nikolas. Inventando nossos selfs: Psicologia, poder e subjetividade. Rio de Janeiro: Vozes. 2011.

[ii] Todos os dados do canal “Ticoloko Motoka” no YouTube foram coletados no dia 20/05/2020.: https://www.youtube.com/channel/UCGwPQk2kacco7h8cuO7t1-A/videos

[iii] Vídeo “PEGUEI UM PEDIDO SINISTRO!!!”: https://www.youtube.com/watch?v=MW1VVDdoD7Y

[iv] Entrega particular é o termo que motofretistas costumam usar para entregas feitas sem o intermédio de aplicativos, ou seja, direto com o cliente. No caso dessa entrega específica Ticoloko havia acabado de entregar um documento através do aplicativo Loggi na residência de um senhor que então propôs a Ticoloko que realizasse uma entrega particular do exame.

[vi] Vídeo “IFOOD!! FUNDO DE 1 MILHAO P/ AJUDAR ENTREGADORES 🤔🤔”: https://www.youtube.com/watch?v=046HZ7mhck4&t=1s

[vii] Vídeo “FUI PRA RUA EM PLENA EPIDEMIA!”: https://www.youtube.com/watch?v=uFGKSAikHC0

[viii] Vídeo “NA TV TA BOMBANDO! NA PRATICA NÃO É ISSO!”: https://www.youtube.com/watch?v=ezsV8lf13_M

[ix] Esse era o vídeo mais recente do canal no dia 20 de maio de 2020: Vídeo “PREFEITURA VAI PROLONGAR A QUARENTENA EM SP !! COM RESTRIÇÕES MAIS RÍGIDAS”: https://www.youtube.com/watch?v=qeoNrxDt3qw&t=311s

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