Por Nina Desgranges*
Com sua invenção para fins militares, intimamente ligada à “guerra ao terror”, os drones, através de sua visão panóptica, são elementos centrais no regime de visualidade militar-industrial [i]. Dentro do capitalismo de vigilância [ii], o uso dos drones vem sendo reapropriado – seja para fins de monitoramento, segurança e entretenimento – gerando novas controvérsias acerca de privacidade, visibilidade e vigilância, visto que os drones podem captar imagens sem que as pessoas percebam [iii].
Em dezembro de 2013, foi prometido pelo presidente da Amazon, Jeff Bezos, que a empresa realizaria entregas por drones até 2018. Apesar de não terem adotado a tecnologia como almejado, outras empresas de delivery ainda investem na proposta[1]. Recentemente, a iFood recebeu autorização da Anac (Agência Nacional Aviação Civil) para realizar testes de entregas através de drones. A princípio, os drones serão usados em duas rotas: a primeira terá cerca de 400m entre a praça de alimentação do Shopping Iguatemi Campinas e o iFood Hub, um centro de retirada de entregas também localizado no shopping. O pedido poderá ser coletado por um entregador no iFood Hub para ser encaminhado à casa do cliente, ou então poderá seguir viagem na segunda rota de drones, entre o iFood Hub e um complexo de condomínios próximo ao shopping[2]. Diferentemente do que alguns entusiastas da tecnologia, como Bezos, imaginavam, os drones não realizarão entregas em mãos do consumidor, ou seja, a iFood ainda depende dos entregadores humanos na última ponta da entrega, apesar de apostar numa logística multimodal para otimizar o serviço.
Segundo Bruno Henriques, vice-presidente de inovação e inteligência artificial da iFood, a empresa busca não apenas ampliar seu raio de atuação, como também diminuir os custos da entrega, visto que o tempo de espera seria reduzido. Além disso, tecnologia traria para o consumidor uma oferta maior de restaurantes disponíveis no aplicativo. Contudo, Henriques afirma que o “(...) maior desafio é dar maior valor ao tempo que os entregadores passam logados na nossa plataforma.”, de modo que a empresa visa reduzir o tempo gasto em situações como “estacionar a moto, descer, achar um lugar para parar(...)” para que o tempo do entregador fique “mais proveitoso”[3].
Os drones não são a única tecnologia proposta pela iFood para excluir a presença física de entregadores de certos trajetos. Robôs autônomos estão sendo testados pela empresa para a retirada de pedidos em praças de alimentação de shoppings até um ponto de retirada de motoboys, e da entrada de grandes condomínios de luxo até a porta do cliente, de modo que entregadores não circulem mais em tais espaços[4]. De acordo com Henriques, vice-presidente de inovação e inteligência artificial do iFood, o robô evitaria praças de alimentação cheias de entregadores "com aquelas mochilas grandes". Entretanto, o CEO Carlos Moyses nega que a iniciativa tenha sido pensada para cortar custos com entregadores e afirma que sempre vão depender de pessoas entregando, pois: "O ritmo de crescimento do iFood no mercado de delivery é muito maior do que a tecnologia de drone"[5].
Ao serem incorporados pela iFood – empresa que se insere de forma exponencial em um contexto de novas formas de organização, flexibilização e controle do trabalho – os drones adquirem outras problemáticas. Além de reforçar controvérsias já antigas [6] acerca de vigilância, coleta e controle de imagens, agora atualizam formas de precarização do trabalho plataformizado. Tendo em vista as recentes manifestações de entregadores de aplicativo [7] – categoria que funciona como “autogerentes subordinados” [iv], ao ser afetada por dinâmicas de gerenciamento algorítmico e autogerenciamento – cujas pautas são, entre outras, aumento do valor por km rodado e aumento do valor da taxa mínima de entrega, o investimento milionário depreendido pela iFood para implementação de drones se torna ainda mais questionável. Considerando a sociedade como uma rede de agenciamentos sociotécnicos, a responsabilidade acerca de tais problemáticas deve recair sobre um conjunto de atores heterogêneos, entre eles os dirigentes da iFood e o drone em si [iii].
Ao invés de investir em tecnologia para evitar que entregadores – em sua maioria, homens negros – com suas mochilas grandes, circulem pelo Shopping Iguatemi e em condomínios de luxo, não seria mais proveitoso pagar taxas justas de entrega? Valores dignos por km rodado? Oferecer uma refeição para aqueles que, com fome, carregam comida nas costas? Um espaço de descanso com banheiro e água para os que enfrentam jornadas de mais de 12h de trabalho? Enfim, a lista de demanda dos entregadores não para por aí...
*Nina Desgranges é graduanda em Ciências Sociais (UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Digitais (IFCS/UFRJ) e desenvolve, há mais de um ano, uma pesquisa a respeito de aplicativos de entrega, onde aborda questões como capitalismo de plataforma, empreendedorismo de subsistência e subjetividade neoliberal através do estudo, sobretudo, de canais de YouTube de diversos entregadores, sob orientação do Professor Dr. Bruno Cardoso (IFCS/URFJ).
[1] Informações disponíveis em: https://veja.abril.com.br/tecnologia/ifood-realiza-primeira-entrega-de-comida-com-drone/. Acesso em: 26/10/2020
[2] Informações disponíveis em: https://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2020/08/ifood-recebe-autorizacao-para-fazer-entregas-com-drones-no-brasil.html. Acesso em: 26/10/2020
[3] Entrevista completa disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2020/02/com-robos-e-drones-vamos-ganhar-eficiencia-diz-bruno-henriques-vice-presidente-do-ifood.html. Acesso em: 26/10/2020.
[4] Informações disponíveis em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/01/25/robo-entregadora-nova-funcionaria-do-ifood-nao-e-humana-e-se-chama-ada.htm. Acesso em: 26/10/2020.
[5] Informações disponíveis em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2019/09/12/como-o-ifood-quer-usar-drones-no-delivery-de-comida-sem-cortar-entregador.htm. Acesso em: 26/10/2020
[6] Para discussão aprofundada a respeito das controvérsias de drones ver CHAMAYOU, Gregoire. Teoria do Drone. São Paulo: Cosac Naify. 2015.
[7] Para mais informações sobre as manifestações dos entregadores ver:
Referências Bibliográficas
[i] DE SOTO, Pablo. “#Dronehackacademy: contravisualidade aérea e ciência cidadã para o uso de Vants como tecnologia social”. Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem (Bruno, Cardoso, Kanashiro, Guilhon e Melgaço (orgs.)). Boitempo. 2018.
[ii] ZUBOFF, Shoshana. “Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização da informação”. Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem (Bruno, Cardoso, Kanashiro, Guilhon e Melgaço (orgs.)). Boitempo. 2018.
[iii] PEDRO, R.; RODRIGUES, A.; COSTA, A.; GONÇALVES, C.; DAVID, J.; ALBUQUERQUE, L.; RHEINGANTZ, P.; CASTRO, R.. “Controvérsias acerca da vigilância e da visibilidade: em cena os drones”. Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem (Bruno, Cardoso, Kanashiro, Guilhon e Melgaço (orgs.)). Boitempo. 2018.
[iv] ABILIO, Ludmila. Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. PSICOPERSPECTIVAS (ONLINE): INDIVIDUO Y SOCIEDAD, v. 18, p. 1-11, 2019. https://www.psicoperspectivas.cl/index.php/psicoperspectivas/article/viewFile/1674/1079
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