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Hackearam nosso processo eleitoral: entenda como as fake news e o caixa dois de Bolsonaro minaram de


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Por Bruno Cardoso*

Nesse segundo turno das eleições no Brasil, ganhou destaque no país e internacionalmente a acusação feita contra o candidato de extrema-direita que lidera as pesquisas, Jair Bolsonaro, de ter se beneficiado de um esquema ilegal de financiamento oculto de campanha por empresários (caixa 2, agravada pela recente proibição de doações de empresas às campanhas) para o disparo de milhões de mensagens de WhatsApp contendo informações depreciativas em relação a seu opositor, Fernando Haddad, sua vice, Manuela D’Ávila e ao PT. Um agravante é o volume de recursos aplicados nessa prática, ao que tudo indica em muito superior aos 1,7 milhões de reais declarados como gastos totais pela campanha de Bolsonaro (segundo reportagem da Folha de SP, apenas um dos pacotes contratados pelos empresários teria sido no valor de 12 milhões de reais). Num primeiro momento, o que sobressaiu foi o crime eleitoral flagrante envolvido nessa prática, o que pode levar, em tese, à impugnação de sua candidatura ou à anulação das eleições. Embora estivesse de acordo com nossa legislação, é difícil acreditar que isso possa acontecer diante do precário estado de funcionamento das instituições brasileiras nesse momento e à indevida e desonesta pressão que vem sendo realizada pelos meios militares – que apoiam amplamente o candidato de extrema-direita -, que envolve ameaças diretas ao STF, ao TSE e a seus membros. Isso é parte fundamental do quadro de autoritarismo de cunho fascista que impera nas Forças Armadas brasileiras hoje.

Embora tudo isso descrito no parágrafo acima seja gravíssimo, não explica nem explicita o principal ponto do escândalo do envio em massa de mensagens: o resultado eleitoral brasileiro deste ano se deve ao hackeamento em massa de subjetividades. Esse processo, certamente, não foi iniciado nesta eleição, mas nela foi potencializado e intensificado – agora sabemos que a partir do financiamento ilegal de empresários ligados a Jair Bolsonaro. Podemos dizer que parte considerável dos eleitores tem produzido julgamentos sobre a realidade baseados em informações falsas e absurdas, o que explica alguns movimentos fundamentais que ocorreram ao longo do processo eleitoral e que em muito se diferenciam dos debates políticos saudáveis e legítimos – que podem causar desgastes, brigas e disputas, mas que fazem parte das disputas ideológicas e de significado que marcam a política em seus momentos e contextos mais salutares. A radicalização criminosa e perigosa que opera a extrema-direita brasileira nesse momento, mais do que antiética ou absurda, é fruto de práticas subterrâneas que ameaçam de forma extremamente grave a nossa democracia e, de modo geral, as instituições democráticas como um todo.

As fake news – ou desinformação - são muito diferentes das campanhas difamatórias e de perseguição política que tantas vezes já vimos ocorrer por meio da mídia tradicional corporativa. De certa forma, essas fake news funcionam em composição com a cobertura jornalística tradicional. No caso do impeachment/golpe contra Dilma Rousseff ou na prisão do Lula, o papel desempenhado pelos conglomerados de notícia – que sempre se colocaram como adversários do Partido dos Trabalhadores – só pode ser realmente compreendido quando pensado em composição com o fluxo alternativo de notícias falsas que circula pelas redes sociais – em especial Facebook, Twitter e, ultimamente cada vez mais, WhatsApp. A cobertura da imprensa, de forma isolada, explica apenas parcialmente a rejeição crescente à esquerda no Brasil, e mais especificamente ao Partido dos Trabalhadores. Mas como funcionam as fake News?

De forma bastante resumida, as estratégias comunicacionais e de propaganda da internet – que movimentam a cada vez mais lucrativa economia de dados – se valem da combinação entre extração, mineração de dados e social profiling (ver https://ledufrj.wixsite.com/ledufrj/single-post/2018/03/25/Por-que-fazer-uma-sociologia-da-internet-Sobre-o-caso-Cambridge-Analytica-e-Facebook), por um lado, e de técnicas de psicologia cognitivista (por exemplo a PNL – programação neuro-linguistica) e de marketing direcionado (microtargeting, como se chama), por outro. Como isso ocorre? A partir da constatação de quais tipos de informação são mais capazes de influenciar as decisões e comportamentos das pessoas, uma série de mensagens e visualizações nesse sentido chegam aos usuários de redes sociais, fazendo-os reagir de determinada maneira. Seja desejando muito um sapato, uma viagem, achando uma excelente ideia pedir um empréstimo que lhe foi oferecido para bancar seus estudos universitários ou, simplesmente, criando rejeição a um determinado candidato ou a determinadas ideias. Nesse último caso, que debatemos aqui, isso se dá através da disseminação de mensagens e conteúdos que despertem o máximo de raiva e indignação naqueles e naquelas que recebem essas mensagens, eleitores e eleitoras.

É nesse processo que atuam as fake News de forma impressionantemente eficaz. As pessoas submetidas a essas fake News – cujo cadastro com número de telefone e informações básicas sobre gostos e preferências foi, na maior parte das vezes, extraído e vendido ilegalmente dos traços que elas deixam em suas navegações pela internet – passam então a construir uma outra realidade, que muitas vezes guarda muito poucos elementos em comum com as coisas que realmente acontecem no mundo. Esse ponto é fundamental para compreendermos o crescimento de discursos e atitudes autoritárias e radicais no Brasil, com inegável viés fascista. Essa extrema-direita, que a muitos surpreendeu em termos eleitorais, advém de um contato das pessoas com uma realidade fabricada, absurda, baseada em notícias falsas e mentiras, num hackeamento das nossas subjetividades e do mundo real. O contato com essa realidade falseada, de forma até compreensível, causa indignação na população que não está ciente desse processo de falseamento, levando-a a demandar por soluções cada vez mais radicais para problemas e questões que, de fato, nunca existiram.

Alguns exemplos disso nos ajudam a melhor compreender esse processo. O principal deles é a “ameaça comunista” que estaria cada vez mais concreta no Brasil, afirmação que carece de qualquer base histórica ou ideológica minimamente concreta. Outro exemplo é a informação, tantas vezes repetida e compartilhada, de que Lulinha – filho do ex-presidente Lula – seria dono da Friboi e passearia pelo Uruguai numa Ferrari de ouro. Hoje todos sabem que a Friboi pertence aos irmãos Batista (que apoiaram o impeachment/golpe) e que a Ferrari de ouro na verdade era de um sheik árabe e circulava por Dubai. Contra Fernando Haddad, além das acusações de possuir uma Ferrari (nem carro Haddad tem), de grande relevância foram as informações falsas de que este teria criado, enquanto ministro da educação, algo chamado de kit gay (mentira já condenada inclusive pelo TSE) para ser distribuídas em escolas para crianças a partir dos 6 anos, além de que este teria defendido em livro o incesto e a pedofilia (mentira criada e disseminada por Olavo de Carvalho, que posteriormente confirmou se tratar de fake News). Também circularam informações ainda mais absurdas e revoltantes, como a de que o PT distribui mamadeiras com bico em formato de pênis para combater homofobia nas creches ou de que o deputado do PSOL Jean Wyllys vai obrigar crianças a mudar de sexo. Não à toa, boa parte dessas mentiras envolvem questões ligadas à sexualidade, num processo de pânico moral que toca em muitos pontos que estavam relativamente entorpecidos do conservadorismo machista e homofóbico brasileiro.

Uma dessas mentiras, em especial, pode ser diretamente associada ao aumento meteórico da rejeição de Fernando Haddad na última semana antes do primeiro turno. A partir de uma blitkrieg de disparos de mensagens contendo fake News, bancada ilegalmente por empresários apoiadores de Bolsonaro, o principal movimento das ruas contra o candidato de extrema direita foi atacado, descaracterizado e desqualificado por uma criminosa campanha orquestrada de desinformação e falseamento de imagens. A marcha das mulheres (ocorrida em 29/9 nas principais cidades brasileiras, movimento que reuniu mulheres e famílias de diversos matizes ideológicos e afiliações políticas, unidas pela rejeição ao candidato fascista, foi retratada pelas mensagens disparadas como um movimento de extremistas anti-religião e anti-família, formado por mulheres e LGBTs radicalizados, não depiladas, sujas, despidas e violentas. As declarações de Eduardo Bolsonaro, filho do candidato da extrema direita e alguns dias depois eleito o deputado federal mais votado da história do país, dão importantes indícios de que o movimento de fake News foi diretamente orquestrado com a campanha bolsonarista (https://www.valor.com.br/politica/5894411/mulher-de-direita-e-mais-bonita-e-higienica-diz-eduardo-bolsonaro ). Coincidentemente, nessa semana ocorreu o maior crescimento das intenções de voto em Bolsonaro e da rejeição de Haddad, que vem, até agora, definindo os rumos do segundo turno.

O principal fato a destacar aqui é que as decisões eleitorais que vêm definindo o futuro do Brasil estão sendo amplamente movidas por questões inventadas, que extrapolam em muito o debate político tal como se coloca em democracias saudáveis. A estratégia da extrema direita, que vem se mostrando muito eficaz, é não apenas esperta, mas sobretudo profundamente desonesta. E seus elaboradores e beneficiados sabem muito bem disso. O volume de informações falsas, explicado em muito pela compra ilegal e não declarada de pacotes de disparo de mensagens falsas – para usuários cujo perfil foi vendido a essas empresas também de forma ilegal -, faz com que a possibilidade de se contrapor a elas seja muito reduzida. O meio pelo qual essas mensagens são distribuídas, o Whatspp, também dificulta muito o debate, diálogo ou mesmo a contestação da veracidade dessas informações.

Como já disse, guardo poucas esperanças de que o Tribunal Superior Eleitoral cumpra seu papel e declare a não validade desse processo eleitoral, hackeado de ponta a ponta pela campanha do candidato fascista. Mas existe, no mínimo, uma esperança, movida por razões um tanto mercadológicas e capitalistas: o efeito devastador que as eleições brasileiras podem desencadear no valor de mercado do WhatsApp, aplicativo que pertence ao Facebook. Nesse momento, boa parte da imprensa mundial já percebeu o que está ocorrendo no Brasil, e atualmente se divide entre a estupefação e a compreensão do processo de hackeamento das eleições por fake News. Possivelmente isso irá provocar um abalo no modelo de negócios do Facebook, como ocorreu por ocasião da publicização do escândalo da Cambridge Analytica, que levou Mark Zuckerberg a depor, pelo primeira vez, no Congresso Americano. Se isso pode trazer algum alento para os brasileiros que se sentem cada vez mais amedrontados e acuados pelo crescimento dos discursos de ódio durante a campanha presidencial, ainda é muito cedo para dizer. Fica, ao menos, alguma esperança de que seja reconhecido o hackeamento eleitoral que tornou, desde o primeiro turno, o resultado dessa eleição viciado por um processo que se mostra, de ponta a ponta, ilegal e imoral, ameaçando cada vez mais a vida e a integridade física e psicológica de parte considerável da população brasileira, exatamente sua parte mais vulnerável.

* Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (IFCS/UFRJ) e coordenador do Laboratório de Estudos Digitais.


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