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Foto do escritorFrancisco W. Kerche

Eleições Pós-demográficas e Opacidade Política


Por Francisco W. Kerche*

A Demografia e seus limites

A forma de se fazer política tem se digitalizado durante o século XXI. Cenas de panfletagens na Central do Brasil ou na Avenida Paulista, de megafones em praças públicas, ou passeatas com bandeiras de partidos e sindicatos passam a dividir espaço com posts, hashtags, eventos, marcações, trendings e inúmeras outras manifestações criadas pelas novas mídias digitais. Desta maneira, apresenta-se a reestruturação das campanhas políticas, propagandas e estratégias neste novo pull media (internet), em oposição ao push media centralizado pela televisão.

A televisão teve o potencial de mapear sua audiência através da demografia. A demografia orienta-se por uma concepção sociológica de diversos marcadores sociais, como gênero, raça, classe social, local de residência, dentre outros, que organizam e mapeiam grupos, consequentemente, mapeando também a audiência. Por meio desta, tanto emissoras podem compreender a recepção de seu conteúdo, quanto grupos políticos preparam decisões de campanha. Um exemplo cotidiano e disponível ao público são as pesquisas de opinião: com elas, podemos saber que, por exemplo, os eleitores de Haddad (PT) crescem majoritariamente no Nordeste, seguindo o espaço favorável de votos do ex-presidente Lula, e se encontra equilibrado entre votos femininos e masculinos. Enquanto Bolsonaro (PSL), tem sua popularidade maior entre homens, pessoas com ensino superior completo, entre 25-36 anos[i], encontrando sua maior oposição entre mulheres (49%), jovens (55%) e no Nordeste (51%)[ii]. Dentro da gama de dados apresentados pelos estudos demográficos podemos fazer cruzamentos sobre intenção de votos e grupos propícios à mudança. Desta forma os diferentes partidos podem organizar suas ações de campanha pelo país.

Tanto a indústria de entretenimento, como as campanhas políticas podem aproveitar da demografia para escolher para quem e como vai ser a informação notificada. A padronização estética dos programas é feita em consonância ao cotidiano simbólico destes públicos alvos[iii], as roupas, as falas, as imagens durante a campanha, etc. A calculabilidade das diferenças busca em última instância que o telespectador continue conectado à programação, ou que o eleitor decida seu voto em determinado candidato. Quanto mais fina a forma de cálculo acerca da audiência mais se apazigua esta relação passivo-agressiva do telespectador/eleitor que está sempre à postos para buscar algo que lhe interesse mais[iv].

Todavia, as formas de cálculo demográfico encontram uma limitação. As categorias concebidas a priori apresentam-se como se existisse uma unidade entre indivíduos de um mesmo conjunto de marcadores. Acredita-se que se tem um gosto semelhante entre pessoas que moram em um mesmo bairro, com a mesma idade, e mesma escolaridade, raça, orientação sexual, gênero, etc. em outras palavras, são estipuladas formas de classificação que devem ter consonâncias estéticas e ideológicas, a partir de marcadores originados pelos pesquisadores. A demografia se redescobre com a chegada da internet. Sabe-se que alguém pode ser um Psolista fervoroso de 21 anos e ter seu vizinho com a mesma idade, que vai para a mesma universidade, votando no candidato do PSDB. Saber destas diferenças não é algo novo para estas pesquisas ou para os pesquisadores, mas uma limitação prática dos conceitos. Existia, obrigatoriamente, uma limitação empírica que se resolveria pela aproximação e porcentagens: “9% das pessoas de ensino superior completo tem intenção de voto em Ciro Gomes". Todavia a possibilidade de criar um perfil recomendado em uma página do feed, e a pull media que substitui a televisão diminui o distanciamento entre o transmissor e o receptor, obrigando a forma de se mapear a audiência, ou melhor, os usuários, a ser ainda mais refinada[v].

A pós-demografia e a criação do eleitor

A primeira forma de organização demográfica já apresentada pode ser vista como uma tabela simples. Nas colunas teríamos as características que desejamos medir e que temos possibilidade de perguntar ao entrevistado: gênero, raça, salário, orientação sexual, em quem vai votar, dentre outros, sempre levando em conta a possibilidade da mentira, do desinteresse, e quaisquer dificuldades amplamente apresentadas em livros sobre metodologia. Já nas linhas teríamos o identificador do indivíduo, no caso seu nome, CPF, RG, ou mesmo um número aleatório. Isto é um algoritmo, todavia um extremamente simples. No caso do facebook ou de outras plataformas a “tabela” já encontra mais complexidade. Nela encontram-se quatro tipos principais de informações[vi]: 1- Vistas de dentro que são os posts que o usuário gostou, quantos likes, quem deu os likes, etc.; 2- vistas ao lado, sua popularidade e audiência; 3- vistas de cima a organização do seu feed, para garantir a presença do usuário em uma economia da atenção com inúmeros estímulos; 4- vistas de baixo, dados que seguem o usuário, os dados do GPS, com quem estava, quanto tempo ficou nos lugares, o que falou, ou seja, os metadados. Todas estas criam um cruzamento de dados entre milhões de pessoas, não pelas características que “queremos” medir, mas por todas as formas de dados que possam ser aglomerados, que, mesmo de maneira contraintuitiva não pareçam correlacionáveis. Suas aproximações são feitas pela própria máquina. Este movimento associativo que altera as organizações humanas e as formas de produção e cultura é o que denominamos de “cultura algorítmica”.

A lógica é simples, a aplicabilidade ultra-complexa. Ted Striphas e Blake Hallinan[vii] explicam a ação da cultura algorítmica como um sistema fechado de três etapas circulares, 1- usuário assiste/entra em conteúdo; 2- o usuário avalia bem; 3- o algoritmo melhora sua recomendação; criando um loop contínuo e cada vez mais específico e refinado (1-2-3-1). A avaliação, no caso do facebook, seria a interação com o conteúdo, reagindo, comentando ou compartilhando. Após isto o usuário é traçado de maneira cada vez mais clara. O grande desafio do algoritmo está nesse equilíbrio fino, entre ser específico e ao mesmo tempo generalista, conseguir pegar nuances ínfimas do comportamento humano, mas ao mesmo tempo generalizar para uma variedade imensa de pessoas, com uma variedade imensa de dados[viii]. Sua aceitação pública e legitimidade se dá pelos resultados que alcança, criando um ambiente de maior coerência aos gostos do usuário e de garantias de consonância. Esses dados, já não podem ser compartilhados como aqueles anteriores, uma vez que não são compreensíveis nem representáveis de maneira clara. A grande novidade na máquina não é criar variáveis e calculá-las, isto já era feito nos estudos demográficos utilizados muito antes, o seu mérito é utilizar destas variáveis para recriar a própria demografia.

Compreende-se isso com o conceito de Cheney-Lippold[ix] de identidade algorítmica. A partir desta, você e outras milhares de pessoas reagem a informações dispostas em sua timeline das maneiras mais diversas, em alguma medida, semelhantes e transversalizáveis. Veremos isso como características percentuais. Por exemplo, se um perfil considerado feminino entrar e reagir em um post sobre carros, normalmente atrelado ao gênero masculino, tanto este perfil ganha aspectos masculinos quanto o post ganha aspectos femininos. Se em algum caso apenas perfis femininos passarem a olhar este post, ele passa a ser considerado um post com características femininas. Ou seja, não se atrela mais o marcador social a priori ao objeto mas o objeto ao marcador social a posteriori. O que se envolve então é a ausência de rigidez acerca das formas de identificação, na qual usuários passam a ter identidades fragmentadas e parcializadas dentro de um espectro criado pelos cálculos da plataforma, e não por preceitos sociais. Isto demonstra não apenas que o algoritmo consegue “descobrir” quem é homem ou mulher, mas que ele mesmo cria, através da interação entre os diferentes usuários, o que é ser homem ou mulher. Somado a este “amolecimento” das características duras da demografia se criam novas características transversais. Algumas mais caras à indústria cultural como “gostar de filmes de ação com explosões mas pouca nudez”, e outras muito bem apreendidas a interesses políticos: “homens de 28 anos que gostem de armas e riam de piadas sexistas”, que também podem ser mapeados pela plataforma. Não apenas o algoritmo ganha a possibilidade de observar quem são eles, mas o resíduo desta ação acaba unindo estes indivíduos transversalmente a despeito de suas disparidades demográficas.

O algoritmo é uma caixa preta que lida com inúmeras variáveis, que passam a ser quase indemonstráveis.[x] Assim viramos sujeitos impressionáveis aptos a “curtir”, “amar”, “haha”, “triste”, “grr” qualquer nova informação, feita “especialmente para mim”. O que se tem é uma dupla relação de um algoritmo que organiza os indivíduos, e que são organizadas por eles. Também os usuários sabem da ação do algoritmo e se subjetivam e buscam direcionar suas recomendações. A relação entre as duas tem imersividade mútua.

A Política Opaca da Pós-Demografia

Pelo algoritmo garantir que apenas aquilo que o usuário apenas veja aquilo que tem possibilidade de “curtir”, grupos acabam sendo criados por afinidade a despeito de limites demográficos. A forma pela qual o algoritmo cria as concepções finas é transversalizando o indivíduo em “divíduos”[xi] e conectando-os. Ou seja, criando associações online que garantem a reprodução de um mesmo discurso. Estas são realizadas de maneira agonística, garantindo um status que não é anti-democrático, mas filtrando aquilo que se encontra no ambiente pelos próprios códigos do sistema. Ou seja, a mesma informação entrará de maneira distinta para dois grupos opostos. Esta forma de ver a sociedade pode ser pensada como um sistema[xii] opaco e operacionalmente fechado, com uma comunicação extremamente improvável, pelo qual a distinção entre gostar e não-gostar orienta o que poderá ser introduzido para determinados grupos.

A questão dentro disso mora na reformulação da estratégia das propagandas e das novas formas de pluralização e acesso na pós-demografia. Não se busca mais acertar um grupo demograficamente localizado, mas uma série de grupos transversais de maneira descentralizada. Como fazê-lo é uma questão importante, a disputa passa a ser feita principalmente de duas formas, dentro da rede e em paralelo à rede. Para isso pode-se observar algumas tendências, a ultra-mediatização de alguns candidatos, a desgeografização de discursos localizados e a criação de ambientes de debate paralelos ao centralizado pela mídia. O horário eleitoral, passa a ter aparição pública na internet e dentro dela é resinificado: vemos a campanha do presidenciável Geraldo Alckmin (PSDB), que fora descoberto de plágio da propaganda inglesa “kill-guns” [mate as armas][xii]; a desgeografização do discurso do candidato do PSL Jair Bolsonaro, que fala que se deve “atirar em Petistas” em um evento no Acre[xiv] e seu discurso localizado se torna rapidamente nacional; ou mesmo o debate paralelo online de Haddad e Manuela D’Ávilla por não poderem participar do debate da Band[xv]. A reorganização do debate online apresenta uma forma paralela e não centralizada de informações e compartilhamento da política.

O algoritmo do facebook procura colocar apenas informações de interesse do usuário durante sua navegação, pois busca que ele continue conectado. Como resultado disso para as eleições são criados espaços de concordância mais que de dissonância na internet.[xvi] Os argumentos de oposição seriam vistos apenas já readaptados para os códigos de um grupo em específico. Para o bem do consumo e para a garantia do prazer do usuário, este não deve ser defrontado com a oposição, que não tenha sido ainda codificada.

O desafio das eleições na contemporaneidade é de como sair do espaço de consonância e alcançar espaços de dissonância. Devemos lembrar que os organizadores das culturas algorítmicas são atores privados (facebook, twitter, instagram, google, etc.), agindo como organizadores da vida pública e do discurso. Obrigando as estratégias políticas a se reinventarem para a estética de algo novo e transversal demograficamente. Restando apenas a questão se o debate tenderá eternamente a dois grupos cada vez mais extremados em suas próprias opiniões ou se há, e onde mora, um espaço de imersão entre as distintas esferas.

* Estudante em Bacharelado em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), integrante do Laboratório de Estudos Digitais e do Núcleo de Estudos Comparados e Pensmento Social

[i] https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/08/21/pesquisa-ibope-de-20-de-agosto-para-presidente-por-sexo-idade-escolaridade-renda-regiao-religiao-e-raca.ghtml

[ii] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/bolsonaro-mantem-lideranca-da-corrida-com-24-apos-ataque-diz-datafolha.shtml

[iii] ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max, A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas, Dialética do esclarecimento, v. 2, p. 113–156, 1985.

[iv] ANG, Ien, Desperately seeking the audience, [s.l.]: Routledge, 2006.

[v] MISSIKA, Jean-Louis, La fin de la télévision, [s.l.]: la République des idées, 2006.

[vi] CARDON, Dominique, A quoi rêvent les algorithmes. Nos vies à l’heure: Nos vies à l’heure des big data, [s.l.]: Le Seuil, 2015.

[vii] HALLINAN, Blake; STRIPHAS, Ted, Recommended for you: The Netflix Prize and the production of algorithmic culture, New Media & Society, v. 18, n. 1, p. 117–137, 2016.

[viii] MACKENZIE, Adrian, The production of prediction: What does machine learning want?, European Journal of Cultural Studies, v. 18, n. 4–5, p. 429–445, 2015.

[ix] CHENEY-LIPPOLD, John, A new algorithmic identity: Soft biopolitics and the modulation of control, Theory, Culture & Society, v. 28, n. 6, p. 164–181, 2011.

[x] MACKENZIE, The production of prediction.

[xi] DELEUZE, Gilles, Postscript on the Societies of Control, October, v. 59, p. 3–7, 1992.

[xii] LUHMANN, Niklas, A realidade dos meios de comunicação, [s.l.]: Paulus, 2005.

[xiii] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-campanha-de-alckmin-faz-plagio-de-comercial-ingles-guns-kill-kill-guns/

[xiv] https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/09/bolsonaro-acre-fuzilar-petralhas.html

[xv] https://veja.abril.com.br/politica/pt-prepara-transmissao-paralela-com-haddad-durante-debate-da-band/

[xvi] CARDON, Dominique, La démocratie Internet. Promesses et limites, [s.l.: s.n.], 2010.

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