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Rodrigo Firmino e Bruno Cardoso

A uberização da Uber


por Rodrigo Firmino* e Bruno Cardoso**

Compartilhando a precarização

Desde a década de 1980 a crise que assola o mundo do trabalho e a sociedade salarial vem sendo documentada e pensada pelo trabalho acadêmico e amplamente debatida nas arenas políticas dos mais diversos países. Essa crise implica o abalo do modelo que prevaleceu em parte considerável do século XX, caracterizado pelo predomínio do emprego formal, pela força da representação sindical e pelas negociações setoriais, além da associação entre a identidade dos cidadãos e sua ocupação profissional e um perfil de gênero majoritariamente masculino. Muitas dessas transformações se consolidaram ou se radicalizaram com a popularização e a conexão constante de dispositivos comunicacionais digitais e a internet, assunto que vem sendo tratado de forma exaustiva pela sociologia.[1] Como efeitos temos, ao mesmo tempo, o lento fim dos empregos e o esvaecimento das fronteiras entre o trabalho e o não trabalho. Além disso, os dispositivos tecnológicos e a rede vêm propiciando o surgimento de novos modelos de trabalho e de exploração de serviços, dentre os quais nos interessa aqui diretamente o da sharing economy.

Tendo como protagonistas empresas que rapidamente tornaram-se gigantes deste ramo, como Airbnb e Uber, o fenômeno se espalha para vários tipos de serviços, acompanhados pela grande quantidade de empresas que apostam no que ficou conhecido como uberização. Este fenômeno é marcado, dentre outras coisas, pela precarização das relações de trabalho, já que as empresas se apresentam apenas como fornecedoras da tecnologia de intermediação de serviços, não assumindo com isso nenhuma responsabilidade trabalhista em relação a seus usuários-parceiros. Exemplos são os mais variados e assustadores, como o caso da prefeitura de Ribeirão Preto (São Paulo), que chegou a elaborar projeto, popularmente conhecido como professor-uber, para contratação de aulas avulsas para a rede municipal de educação.[2] Se para a Uber a consequência mais imediata parece ser a precarização das relações de trabalho e a extinção do vínculo formal, no caso do AirBnB os impactos se sentem mais, para além do setor hoteleiro, no processo de gentrificação das vizinhanças e da expulsão dos locatários tradicionais, com contratos longos e valores (bem menores) mensais, e não diários. Ambos, AirBnB e Uber colaboram para a produção da cidade contemporânea, bastante diferente das cidades que viram o encerramento do século XX.

A rapidez da disseminação e o impacto da economia colaborativa não podem ser explicados apenas em razão do encolhimento do mercado de trabalho formal e da precarização das relações de trabalho, nem por conta do desenvolvimento e popularização dos dispositivos tecnológicos conectados pela internet. O modelo Uber-AirBnb obteve sucesso, diante de várias tentativas diferentes de startups na fervilhante economia dos aplicativos, também por ter "afinidade eletiva", como diria Max Weber, com aquilo que é chamado de self empreendedor[3], característico da racionalidade neoliberal[4] contemporânea e dos modos de subjetivação que a produzem. Em outras palavras, trata-se da sedução do empreendedorismo, da autoconcepção dos indivíduos como "empresas de si", constituídas primordialmente por capital humano e concorrendo com inúmeros outros indivíduos-empresa pela prestação de serviços ou por oportunidades de mercado. De proprietários imobiliários com vários imóveis no AirBnB a motoristas de Uber que trabalham até 14 horas por dia, seja como forma de aumentar seu capital econômico ou de sobreviver em um contexto de crise e queda nos índices de vagas de trabalho formal e de encolhimento do valor real do salário mínimo, cada vez mais pessoas se envolvem com o modelo da sharing economy.

Dani e o "Comandante": a precarização da liberdade precarizada

A uberização ganha contornos curiosos a cada dia, mas recentemente presenciamos o que parece ser uma tentativa de se elevar ao máximo o aproveitamento deste tipo de precarização do ponto de vista da exploração do trabalho. Os detalhes do esquema impressionam pela engenhosidade das relações propostas para maximizar a exploração das horas contratadas de um trabalhador, a ponto do contratado realizar atividades adicionais em suas horas de trabalho para, indiretamente, pagar por seu próprio salário.

Após um encontro da LAVITS[5] em São Paulo, tomamos um UberX conduzido por uma jovem motorista chamada Daniele[6], muito simpática e alegre. Daniele seguia o caminho sugerido pelo aplicativo e conduzia com eficiência. Animados com as possibilidades de novos projetos de pesquisa sobre vigilância da LAVITS, conversávamos sobre Big Data e as possibilidade de uso da coleta e manipulação de dados por governos, empresas e cidadãos. Debatíamos projetos para, por exemplo, modificar a precificação de apólices de seguro baseada na análise de dados individualizados e em tempo real de clientes, personificando de maneiras cada vez mais precisas os cálculos de risco.

Daniele manipulava seu celular enquanto conduzia, recebendo e respondendo mensagens de um interlocutor chamado "comandante", mas parecia atenta à nossa conversa. Foi quando nos ocorreu envolvê-la na discussão, questionando-a sobre as condições do seguro de seu veículo pelo fato de usá-lo como instrumento de trabalho informal. Daniele respondeu dizendo que no seguro não havia informações sobre o uso da Uber, mas disse que o veículo, na verdade, pertencia a outra pessoa, seu "chefe". Este fato não passou despercebido, e queríamos saber mais sobre o que parecia ser um caso de terceirização de frota Uber, o que não seria o primeiro caso.

Mas estávamos equivocados. Daniele era motorista profissional, contratada por Michel para servir sua família. Seu trabalho seguia todas as regras trabalhistas, como jornada de oito horas diárias e registro em carteira. Entretanto, nas horas em que estava a trabalho e sem atividades específicas com a família de Michel, Daniele era obrigada a realizar corridas como motorista Uber, sob as seguintes condições: todo valor repassado pela Uber iria diretamente para a conta do chefe; o e-mail cadastrado no serviço era o de Michel, que monitorava valores e trajetos conforme estes aconteciam; em caso de acidentes, a responsabilidade recairia sobre Daniele; celular e veículo eram de propriedade de Michel; e não havia a possibilidade de trabalhar sem aceitar essas condições.

Muito constrangidos e preocupados, começamos a realizar cada vez mais perguntas, e a tecer comentários sugerindo cuidados e o registro de todo o processo em caso de problemas futuros com a justiça trabalhista. Daniele então nos revelou outro detalhe assustador. O "comandante" com quem ela trocara mensagens pouco antes, era o próprio Michel, que reclamava pela quantidade pequena e preço baixo das corridas. Afinal, ele recebia relatos de todas as corridas em tempo real. Já nos preocupávamos se nossas conversas também não estariam sendo monitoradas pelo "comandante". Daniele se sentia pressionada e tinha que cumprir com todos os requisitos pois, como ela própria disse, "desse jeito sou eu que pago meu próprio salário". A lucidez de sua análise ressaltava que o pagamento que recebia era composto por parte do que ela mesma arrecadava com Uber durante sua jornada de trabalho, desempenhando uma função que se desviava de sua atividade-fim — conduzir a família de Michel ao shopping, à escola, ao clube, etc.

A exploração se revelou complexa, astuta e eticamente questionável, de uma trabalhadora "semi-precarizada", a partir de uma situação construída sobre ambiguidades, por um patrão que se identificava no celular como "comandante". Tratava-se de uma maximização da exploração de sua força de trabalho. Era curioso e surpreendente que, numa atividade tão característica da sharing economy e do self empreendedor, o velho conceito de mais-valia e da propriedade dos "meios de produção" pudesse fazer tanto sentido.

A história ganhou contornos de assédio moral quando Daniele relatou ter pedido para ser bloqueada pela própria Uber. Bloqueios de usuários/parceiros da Uber são comuns em casos de desobediência das regras de uso do serviço, mas nunca ou raramente a pedido do próprio usuário/parceiro. Isso mostra uma tentativa de Daniele para se desvencilhar da atividade adicional sem perder o emprego. Funcionou por alguns dias, apesar dos pedidos insistentes do "comandante" para que ela resolvesse a situação junto à Uber. A pressão se dava por meio de constantes comentários de que ele não conseguiria manter a motorista e que seria "obrigado a demiti-la". Impaciente, ele mesmo criou uma nova conta para Daniele, que precisou voltar a fazer as corridas já que precisava do dinheiro para se manter. Contou que, no auge da pressão, foi no escritório da Uber e explicou a história, sendo informada que aquela situação era irregular e que não seria possível reativar sua conta. Já buscando abandonar definitivamente essa situação de "uberização da uber", Daniele contou que estava completando um curso para motorista de ônibus e que já tinha trabalhado como motorista de van escolar, função que não se importaria de desempenhar novamente.

Pouco antes de nos deixar em nosso destino final, ainda houve tempo de sabermos uma outra faceta do caso. Daniele mencionou haver outra motorista trabalhando para a família nas mesmas circunstâncias. Nos chamou a atenção o fato de serem ambas motoristas mulheres, o que foi justificado por Daniele como ciúmes do "comandante" pelo fato das motoristas estarem à disposição de sua esposa. Para além do ciúmes da esposa, outros atravessamentos por relações de gênero (e poder) podem ser percebidos nesta situação, já que o "comandante" parecia inspirar medo em sua motorista, e alimentava a relação patronal com constantes ameaças, certamente aproveitando o fato de sua funcionária ser uma mulher. A razão de empregar apenas mulheres possivelmente o fazia exercer outras formas de dominação e poder mais ou menos sutis e já extensamente pensadas e apontadas como características das relações de gênero no mundo do trabalho.

Antes que deixássemos Daniele e ela se fosse com outro passageiro, perguntamos ainda se ela gostaria que a avaliássemos com a nota máxima (5 estrelas) ou se preferia uma nota baixa, para ser bloqueada novamente pelo aplicativo. "Nota alta, né, porque a gente tem o nosso orgulho". A nota que demos, cinco estrelas, não era de forma alguma injusta. Longe disso, a viagem acabou sendo perturbadoramente agradável, apesar da história de precarização disfarçada, muito pela simpatia e abertura da própria Daniele, duplamente uberizada e sob vigilância de seu "comandante".

Uberizações

O caso da Daniele nos mostra aspectos sombrios daquilo que vem sendo chamado de sharing economy. No lugar da maior liberdade e autonomia prometida pelas formas de empreendedorismo criativo, o que pudemos ver foi um trabalho ainda mais intenso, controlado e hierarquizado. Se é verdade que o modelo de trabalho que constituiu o capitalismo industrial fordista vem se enfraquecendo desde a década de 1980, pelo menos, não foi para nos dirigirmos a um mundo no qual o próprio trabalho, e sua importância na própria constituição disciplinar da sociologia, perderia a cada dia mais sua centralidade[7]. De modo quase oposto, o trabalho vai se tornando onipresente, distribuído por dispositivos tecnológicos que nos acompanham a todo momento, que nos alertam, nos conectam, nos rastreiam, e até certo ponto, nos aprisionam na mais plena mobilidade.

O "comandante", sem dúvida, foi empreendedor ao ter a ideia de colocar suas duas funcionárias para trabalharem, nas "horas vagas de trabalho" como motoristas da sua família, também como motoristas potenciais de qualquer usuário da Uber em São Paulo. Ao ter a ideia de transformar seu veículo particular em meio de produção e, através de um contrato formal ambíguo, se apropriar da mais-valia produzida por suas duas trabalhadoras, o "comandante" não fazia algo muito diferente daquilo que Marx observara na aurora do capitalismo industrial ainda no século XIX.

Não pretendemos com isso afirmar que a economia compartilhada e suas variações de capitalismo criativo empreendedor possam ser reduzidas ao caso que apresentamos, ou mesmo que este seja significativo das relações econômicas e sociais que emergem e sustentam a sharing economy. Muito menos defendemos que a perspectiva marxista, elaborada 150 anos antes do surgimento de empresas como Uber e AirBnB e do modelo econômico que proporcionam, seja a principal chave de explicação para as transformações contemporâneas do mundo do trabalho. Contudo, ao destacarmos as especificidades desse caso, levando em consideração o contexto político do Brasil do pós-golpe de 2016 e o avanço das políticas neoliberais de desregulamentação do trabalho, não há como não pensarmos nas crescentes possibilidades de radicalização da exploração capitalista e da precarização das relações de trabalho. Gradualmente, um pouco sem sentirmos, um tanto sem reagirmos, vamos nos acostumando com formas cada vez mais criativas, empreendedoras e autônomas de se explorar os mais pobres, mais fracos e mais precários. Um mundo de uberexploração de um trabalho cada vez mais uberificado.

Texto publicado na Le Monde Diplomatique Brasil.

* Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana (PPGTU) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), editor-chefe da Revista Urbe (www.scielo.br/urbe) e membro fundador da Rede Latino-Americana de Estudos em Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits – www.lavits.org). E-mail: rodrigo.firmino@pucpr.br.

** Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (IFCS/UFRJ) e coordenador do Laboratório de Estudos Digitais.

[1] Ver, por exemplo, Castells, Manuel (1999). A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra.

[2] Ver Basilio, Ana Luiza (2017). Professor Uber: a precarização do trabalho invade as salas de aula. Carta Capital, 28 de agosto de 2017. Disponível em: https://goo.gl/BaAMiW.

[3] Rose, Nikolas (2011). Inventando nossos selfs. São Paulo: Vozes; e Rose, Nikolas; Miller, Peter (2012). Governando o presente. São Paulo: Paulus.

[4] Dardot, Pierre; Laval, Christian (2016). A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo.

[5] Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (www.lavits.org).

[6] Nomes foram modificados para preservar a identidade dos envolvidos.

[7] Offe, Claus. (1989). Trabalho: a categoria-chave da sociologia? RBCS: revista Brasileira de Ciências Sociais, 4(10): 6-20.


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