O momento auge das queimadas dos últimos dias em Rondônia, para sua repercussão na internet, foi a chegada de uma nuvem negra que escureceu São Paulo às 15h da segunda-feira passada (19/08)[i]. O acontecimento possibilitou que os olhos do mundo se voltassem para o aumento de mais de 80% das queimadas da Amazônia, e reassegurassem os dados apresentados pelo INPE do crescimento de 88% do desmatamento desde o ano passado[ii]. Diversos grupos, nacionais e internacionais, se mobilizaram rapidamente. A repercussão se ampliou ainda mais depois da declaração falsa do presidente da república que responsabilizou pelo incêndio ONGs de meio ambiente que reagiram ao corte de verbas públicas.
Já no campo progressista as reações não foram menos variadas: a aparição e rápida internacionalização da #SOSAmazonia; performances públicas e atos em pontos centrais das capitais do país; um amplo acervo de imagens pendulando entre um tom apocalíptico e jocoso; alguns diagnósticos de que o problema era oriundo do consumo de carne; e por fim algumas que foram ridicularizadas por páginas como “Galãs Feios”, “Eu Sou Contra a Inteligência”, “White People Problems”, dentre outras, como a pintura corporal de uma youtuber com uma imagem da Amazônia em chamas com animais característicos de savanas, ou de eventos como “yoga pela Amazônia”, “Meditação pela Amazônia”, etc.
Não vou me alongar sobre o que julgo ser a fonte do problema, mesmo localizando-a em um tripé político, institucional e estético: a fala de Jair Bolsonaro que culpabilizava as ONGs, claramente ignorando o “dia do fogo” dos grandes latifundiários; a diminuição de investimentos em políticas para prevenção de incêndios, ou mesmo a recusa dos U$20mi dos países da União Européia; a negação sistemática de toda forma de validação científica como os dados do INPE e de diversas outras bases confiáveis para a observação do desmatamento[iii]; por fim, a estética cara ao presidente do “capitão motosserra”[iv] e a escolha de ministérios daqueles que negam o aquecimento global garantindo um discurso dominante de liberdade para o desmatamento. Foco, aqui, na crítica do próprio campo progressista que se repete sobre uma suposta imobilização gerada pelas redes sociais, tentando discutir esse fenômeno que se acredita de “bolhas”, e da inutilidade da mobilização digital.
Na Internet, estamos em “Bolhas”?
“Bolhas” não são a melhor forma de observar nossa vida social, mesmo quando não levamos em conta as redes sociais. Cada indivíduo, mesmo que integrado a um grupo específico, sempre entra em contato com outras camadas de proximidade, fazendo com que seu leque de “vizinhos” seja muito variado: Amigos do colégio, da faculdade, da cidade natal, do bairro, de infância, do trabalho, etc. vão criando uma rede densa de contatos que vamos operando da melhor forma que conseguimos. Podemos considerar que o digital também compartilha essas camadas de interação. Todavia, existe um grande influenciador entre elas: o algoritmo de recomendação.
Cada algoritmo tem formas particulares de produzir seu cálculo, que geram culturas algorítmicas próprias[1]. Porém, todos compartilham uma lógica fundamental: suas recomendações não são baseadas no conteúdo propriamente recomendado, mas pelas formas de interação localizadas por trás dele. A própria identidade do usuário na rede não é produzida por uma “auto-identificação”, mas por uma construção transversal de interações múltiplas[2]. A recomendação do algoritmo se apresenta, então, como uma espécie de fetichismo da mercadoria, reifica as relações entre objetos na internet omitindo as relações sociais que a produziram, pela padronização das pessoas de gostos similares. O google, a título de exemplo, não seria exatamente o oráculo de nossa geração, aquele que tudo sabe responder, mas Zeus, preocupado para a ordenação do olimpo. Seu “grande conhecimento” não é de conteúdos, mas a ordenação da página, feita pela quantidade de vezes que outros sites citam aquele site em específico, hierarquizando as fontes de conhecimento, criando uma disputa para o primeiro e mais importante lugar da lista. É mais relevante a forma com que o usuário x interage com o ambiente digital e se é similar ao usuário y do que a proximidade entre os dois (isso é mais um dado de interação). Hoje, frases como “meu algoritmo é bom”, “vai estragar meu algoritmo”, “sai da minha conta pra ver esse vídeo”, demonstra que temos uma relação sabida, performática e comunicativa com esse algoritmo, ele tentando prever nossa ação e nós a dele[3].
Argumento que o melhor termo para definir as formas de relações da internet são nichos transversais. Ou seja, grupos que melhor podem aceitar determinado conteúdo, porém ultra-personalizados e simultaneamente transversalizados. Eles não são feitos por proximidade física com o outro, mas por transversalidades de interesse entre partes. A disputa não mora apenas em fazer seus amigos verem determinado post, mas em influenciar a maneira como as pessoas conseguem lidar com determinado conteúdo algorítmico.
É Possível Disputar a Internet?
A disputa na internet se dá em dois âmbitos: o primeiro, e mais óbvio, é a tentativa de alterar a opinião de alguém por meio de comentários, campanhas, posts, etc. buscando diretamente dialogar com outro, mais próximo à política mais “clássica” que já conhecemos bem. Já a segunda é por meio de uma disputa algorítmica, a tentativa de fazer com que aqueles que ajam similarmente sejam recomendados para os mesmos conteúdos, o que torna mais visíveis certas pautas, inclusive para interlocutores que você não conhece. Participamos das mais distintas redes sociais escalonadas e paralelas[4], e imaginá-las como bolhas esquece do caráter transversal que é o mais central a longo prazo para o convencimento[5].
Mesmo assim, ainda existem diversas ressalvas sobre até que ponto a disputa na internet pode ser realmente feita com as condições materiais existentes. A falta de especialização, em comparação com os núcleos da nova-direita, implica quase exclusivamente em conteúdos de engajamento orgânico, ao título do acaso ou da tentativa de constituir uma estratégia entre alguns disseminadores. Um lado pode utilizar de bots para eleições[v], ter contatos com figuras como Steve Bannon que já acumularam experiências e repertórios sobre o tema[vi] e mapear os pontos indecisos do mapa político digital[vii]. Isso faz com que confiar no impulso orgânico seja sempre limitado, todavia ele ainda é parte bastante relevante da disputa.
Pragmáticas Para uma Política Digital
Se torna urgente compreender as formas de disputa digitais em seus dois âmbitos fundamentais: pela superfície do convencimento direto e pela disputa do algoritmo. Isso envolve amplas discussões sobre cada forma particular de disputa e a particularidade de cada rede: o Twitter pela velocidade, o Facebook pela variedade de interação, o Instagram pela disseminação pessoal, etc. O digital não é um espaço separado da vida social, é constitutivo e constituído por ele. A separação entre dois campos dicotômicos e opostos “virtual/real” simplificam a complexidade da vida social que envolve necessariamente o “digital”[6]. A acusação de que campanhas virtuais tem pouco efeito tem duas facetas: a primeira, correta, pois lidar apenas com a política do “virtual” não teria alteração no mundo “real”; todavia a política do “real”, também é uma limitação que desconsidera a necessidade da mobilização digital para real mudança na vida social contemporânea. Se torna urgente buscar o avanço técnico e uso do big data para gerar uma real política do digital unida à complementariedade das “ruas” (e vice-versa). O post como ferramenta política é necessário e disputa a atenção e o uso do algoritmo, todavia, sua ação tem que ser efetivada pela disputa política para além da rede. O digital evita a lógica do virtual e do real como uma oposição e os percebe como uma continuidade.
A política do digital é hoje o imperativo do debate no século XXI.
[1] CARDON, Dominique, Le pouvoir des algorithmes, Pouvoirs, n. 1, p. 63–73, 2018; SEYFERT, Robert; ROBERGE, Jonathan, Algorithmic cultures: essays on meaning, performance and new technologies, [s.l.]: Taylor & Francis, 2016.
[2] CHENEY-LIPPOLD, John, A new algorithmic identity: Soft biopolitics and the modulation of control, Theory, Culture & Society, v. 28, n. 6, p. 164–181, 2011; ESPOSITO, Elena, Artificial communication? The production of contingency by algorithms, Zeitschrift für Soziologie, v. 46, n. 4, p. 249–265, 2017.
[3] INTRONA, Lucas D., The algorithmic choreography of the impressionable subject, in: Algorithmic Cultures, [s.l.]: Routledge, 2016, p. 38–63.
[4] WATTS, Duncan J., Six degrees: The science of a connected age, New York, NY, USA: WW Norton & Company, 2004.
[5] KERCHE, Francisco W.; RODRIGUES, Anthony, Indústria Cultural à la Carte: Esfera pública e racionalização de mercado, da telenovela ao Netflix, Revista Ensaios, v. 12, p. 22–38, 2019.
[6] The End of the Virtual – Digital Methods, in: , Amsterdam: [s.n.], 2009.
[i] Sobre o escurecimento de São Paulo segunda feira ver: https://www.tecmundo.com.br/ciencia/145189-radar-laser-inep-registrou-nuvem-fuligem-enegreceu-paulo.htm
[ii] Sobre a notícia do INPE https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/07/04/inpe-registra-em-junho-aumento-de-88percent-de-desmatamento-na-amazonia.ghtml
[iii] Sobre a polêmica dos dados do INPE https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2019/07/20/diretor-do-inpe-nega-acusacoes-de-bolsonaro-reafirma-dados-sobre-desmatamento-e-diz-que-nao-deixara-cargo.ghtml
[iv] Sobre a declaração de Bolsonaro, ver: https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2019/08/06/bolsonaro-ironiza-criticas-sobre-desmatamento-sou-o-capitao-motosserra.htm
[v] Sobre o uso de Bots na campanha de Bolsonaro: https://congressoemfoco.uol.com.br/eleicoes/bolsonaro-e-o-presidenciavel-mais-citado-por-robos-no-twitter-mostra-nova-ferramenta-do-congresso-em-foco/
[vi] Proximidade de Eduardo Bolsonaro (PSL) de Steve Banon, principal nome da Cambridge Analytica e da nova-direita norte-americana nas redes https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,filho-de-bolsonaro-vai-a-festa-de-aniversario-de-steve-bannon,70002624402
[vii] Para ler um pouco sobre a Cambridge Analytica, empresa responsável pela vitória do Trump nos EUA e sua relação com o governo atual: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/12/08/O-que-a-Cambridge-Analytica-que-ajudou-a-eleger-Trump-quer-fazer-no-Brasil