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  • Foto do escritorFrancisco W. Kerche

Os Cálculos da Arte Séria


São inúmeros os filmes em que alguém, completamente apaixonado, aprende algo sobre a vida da protagonista para atingir seu objetivo. Descobre que ela é fã de um filme específico, de uma autora, de uma música, e “por acidente” passa no corredor ouvindo esta mesma música bem alto no seu fone de ouvido. Ela, ao parar, diz, “não acredito que você gosta dessa banda”. O clichê funciona, porque, quando se trata de se aproximar de alguém, essas pequenas informações, que parecem não valer nada, equipara-se ao ouro, e aqueles que não tem acesso a elas são obrigados a olhar os dois dividindo uma caixinha de suco, apaixonados, na cafeteria.

O valor dos dados cria uma forma nova de pensar o mercado. Sabemos que quando você clicou neste link uma série de dados foram disponibilizados para o Facebook, deixando seu perfil cada vez mais exato. Este é o caso de várias plataformas como Google, Amazon, Apple, Instagram e diversas outras. Dentre estas plataformas encontramos a Netflix. Uma plataforma de Streaming que teve início em 1990, com o método VOD (Video On Demand), em que o consumidor escolhia determinado filme, ou série e recebia o DVD em sua casa. Em seguida evoluiu para o SVOD (Subscription Video On Demand), no qual o consumidor receberia os vídeos mensalmente. A grande revolução que fez a Netflix foi o momento em que passou para o streaming em 2011, gerando uma grande massa de assinantes, até chegar em sua primeira produção própria: House of Cards em 2013.[1] Desde então vemos mais e mais séries produzidas por esta gigante: BoJack Horseman, Sex Education, The Good Place, Orange is the New Black, The end of fuck*ng world, Cara gente branca, Black Mirror, Atypical e até a brasileira 3%, compõem seu catálogo hoje.

A Netflix foi para o Oscar deste ano como uma grande promessa. Saiu de lá com três oscars, fotografia, direção e melhor filme estrangeiro. Além de estar indicado para melhor filme, melhor atriz, melhor roteiro original e melhor mixagem de som[i]. Roma, veio como um filme impactante, de ritmo lento, e cenas exuberantes, uma qualidade de filmagem impressionante. Nele, Alfonso Cuarón nos conta a história de sua infância a partir da perspectiva de sua empregada doméstica, Libo. A narrativa apresenta sua vida no México, no bairro Roma, de onde deriva o nome do filme.

Todavia a Netflix, com esta película, nos levanta uma questão interessante: Como uma indústria deste porte, que busca cada vez mais ampliar seu público consumidor, consegue fazer um filme com o ritmo e a forma de Roma? O estudo de mercado é uma forma utilizado pelos canais de entretenimento para analisar se vale ou não investir em determinado filme. Diversos fatores são levados em conta, para que o filme ganhe mais bilheteria. Isto explica a grande quantidade dos chamados “blockbusters”, e das sequências ou remakes que cada vez mais são produzidas (Dumbo, O rei leão, Aladeen, Os Vingadores: Guerra Infinita, etc.). A garantia do lucro é interessante para essa empresa e a faz homogeneizar aquilo que é feito nas telas.

É neste interím que devemos parar para observar a Netflix. O estudo de mercado das grandes empresas cinematográficas, como a 20th Century fox, Dreamworks e MGM, se baseiam na medida da audiência e de garantias pré-estabelecidas. A Netflix, por outro lado, faz seu estudo de maneira multifacetada: Em primeiro lugar, a plataforma não apenas produz mas é o locus em que o usuário assiste os filmes e séries que foram produzidos. Esta interação cria um perfil cada vez mais específico do usuário, como veremos à seguir:

Esta é a base simplificada da recomendação da Netflix. Nesta tabela, os 1s representam os “thumbs-up” (gostar), e os 0s os “thumbs-down” (não-gostar), neste caso, o usuário 1 e 2 tem gostos bem parecidos (gostam dos filmes 4 e 5 e não gostam dos 2 e 3), por outro lado, o usuário 1 tem um gosto bastante distinto do 3. Baseado nisso, se o usuário 1 gostou do filme 1, existe uma grande probabilidade que o usuário 2 também goste, e que o 3 não goste. Assim é possível pensar as recomendações. Esta é uma simplificação, porque a Netflix não age como nosso exemplo inicial, tentando entender do que gosta a garota, para dar a sorte de passar do lado dela no corredor ouvindo the smiths. A plataforma acerta de uma maneira tão exata que em 2016 entre 75-80% do que é assistido vem da aba de “recomendados para você”[2]. Esta exatidão se dá por alguns fatores.

Em primeiro lugar, a quantidade de inscritos: Netflix passou de 3 milhões de usuários em 2015 a 6 milhões no ano seguinte[ii] e se estima que em uma década teremos em torno de 262 milhões de pessoas na plataforma streaming[iii], o que disponibiliza uma quantidade ainda maior de dados de uma massa imensa de indivíduos no mundo todo. Em segundo lugar, seu algoritmo, além de criar esta relação com o gostar/não-gostar também salva os dados de quando se pula, pausa, avança e volta, dando uma certeza não apenas do que foi acertado, mas como foi acertado. Ele compreende nuances do interesse de seus utilizadores – se gostam de filmes de romance, com nudez não explícita, e alguma trama policial – ou mesmo seus gostos peculiares que eu não entenderia.

Outra razão é o jogo complexo entre a construção da base de dados e as classificações dos usuários entre si. Roma, na Netflix é listado como “Cidade do México; Visionário; Festival de Veneza”[iv] (figura 1), enquanto na plataforma de classificação de filmes, IMDB, vemos ele apenas como “drama”[v] (figura 2). Esta variação, já é um primeiro caminho para a especificação da recomendação. Também, a particularidade da nota. Enquanto sites de críticas tendem a criar notas por dois eixos, da “crítica” (Metascore), e do “público” (como eu e você); a Netflix dá a “nota” pelo grau de proximidade que o filme tem com o interesse do perfil que está assistindo, no meu caso 98%.

A Netflix também aproveita-se de um duplo sentido da ideia de “amigo”. Parte deles são aqueles que você têm mais ou menos interação no facebook (uma vez que fazemos nosso perfil, costumeiramente à ele associado), e tenderia a gostar das mesmas coisas, a outra é o “amigo algoritmo”, aquele que, não necessariamente você conhece, mas segue outras classificações positivas e negativas, como era o caso de nossos exemplos na tabela um pouco mais cedo. A interatividade da produção da netflix chegou a tal ponto que podemos ver filmes como Bandersnatch, em que se pode fazer escolhas durante a película, produzindo narrativas diferentes. Neste caso, a individualização da forma de ver cinema se encontraria inclusive no próprio filme.

Figura 1 - O Filme "Roma" na plataforma Netflix

Figura 2 – Filme "Roma" no IMDB

Porém, porque isso é importante? A indústria cultural sempre encontrava novas maneiras de classificar sua audiência[3]. A centralidade disso apresenta-se pela quantificação do sujeito. Todavia, com a chegada do streaming, esta classificação passou a ser um ato bilateral, não tentava mapear o sujeito por aquilo que ele diz, mas abre a possibilidade de observá-lo no momento em que ele interage com os objetos digitais. Esse novo indivíduo, pronto para interagir com aquilo que aparece na tela chama-se “sujeito impressionável” (impressionable subject)[4]. A Netflix transformou seus usuários em sujeitos impressionáveis, e sua produção em um objeto interativo. Não bastando isto, esta nova faceta da indústria cultural ganha uma possibilidade de não-homogeinedade. Para Adorno[5], a Indústria Cultural busca deixar a produção cada vez mais homogênea, para tentar atingir o maior coeficiente possível de pessoas. Mesmo as variações internas não significam nada que não seja uma busca incessante por novos públicos. A plataforma, por outro lado, por ter uma produção bastante variada, consegue criar filmes completamente direcionados à nichos, que não são pensados por suas características demográficas, como é o caso do estudo de público como foi dito anteriormente, mas por sua proximidade de interesse.

No que tange à indústria cultural, Adorno afirmava que a busca incessante da audiência de maneira industrial faria com que a indústria cultural se apresentasse contra o “mal da arte séria”. A “arte séria” é aquela que consegue fazer o telespectador sair de sua “zona de conforto”. A homogeneização seria uma fuga desta arte, pois uma vez que se tem interesse em uma audiência cada vez maior para a mesma narrativa, obriga-a a não enfrentar diretamente os preceitos dos telespectadores. Já a Netflix, que se da ao luxo da produção de uma arte nidificada, pode ampliar o eixo horizontal e receptivo da arte industrial. Em paralelo a isso com a semi-infinita produção de dados, a empresa tem algumas “dicas” do que é ou não é interessante e para quem, que a faz industrializar sua produção de maneira fina. A possibilidade da nidificação e a não necessidade da aceitação geral do produto cultural amplia o espaço de produção do diretor e possibilitou um filme como Roma ter um reconhecimento de destaque na Academia.

A indústria cultural se algoritmizou e se torna cada vez mais “indústria” e cada vez mais “cultura”. A possibilidade de criar nichos é uma divisão que amplia a liberdade e paradoxalmente nunca se teve tantos dados para sua padronização. A Netflix já anunciou seu próximo filme: “Operação Fronteira” que terá lançamento no cinema, pois tentará buscar prêmios[vi], contando no elenco com Ben Affleck, Oscar Isaac, Charlie Hunnam e Pedro Pascal. Esta nova forma de fazer cinema, sem a garantia das sequência tem a garantia dos dados, e o mal da arte séria se encontra industrializado.

[1] MISSIKA, Jean-Louis, La fin de la télévision, [s.l.]: la République des idées, 2006.

[2] HALLINAN, Blake; STRIPHAS, Ted, Recommended for you: The Netflix Prize and the production of algorithmic culture, New Media & Society, v. 18, n. 1, p. 117–137, 2016.

[3] MISSIKA, La fin de la télévision; ANG, Ien, Desperately seeking the audience, [s.l.]: Routledge, 2006; HALLINAN, Blake, From Borking to Streaming: The Normalization of Media Surveillance, AoIR Selected Papers of Internet Research, v. 5, n. 0, 2016.

[4] INTRONA, Lucas D., The algorithmic choreography of the impressionable subject, in: Algorithmic Cultures, [s.l.]: Routledge, 2016, p. 38–63.

[5] ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max, A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas, Dialética do esclarecimento, v. 2, p. 113–156, 1985.

[i] https://variety.com/2019/film/news/2019-oscars-winners-list-academy-awards-1203145638/

[ii] https://canaltech.com.br/entretenimento/base-de-usuarios-da-netflix-no-brasil-dobra-em-um-ano-empresa-planeja-expansao-89080/

[iii] https://forbes.uol.com.br/negocios/2018/03/numero-de-usuarios-da-netflix-chegara-a-262-milhoes-em-uma-decada/

[iv] https://www.netflix.com/search?q=roma

[v] https://www.imdb.com/title/tt6155172/?ref_=fn_al_tt_1

[vi] https://www.noticiasaominuto.com.br/cultura/714938/operacao-fronteira-proximo-filme-da-netflix-esta-cheio-de-estrelas

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